15 agosto 2009

Quem sou do que resta ....

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura

Essa intimidade perfeita com o silêncio

Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo

– Perdoai!eles não têm culpa de ter nascido...


Resta essa imobilidade, essa economia de gestos

Essa inércia cada vez maior diante do Infinito

Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível

Essa irredutível recusa à poesia não vivida.


Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento

Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade

Do tempo, essa lenta decomposição poética

Em busca de uma só vida, uma só morte.


Resta esse coração queimando como um círio

Numa catedral em ruínas, essa tristeza

Diante do quotidiano; ou essa súbita alegria

Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...


Resta essa vontade de chorar diante da beleza

Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido

Essa imensa piedade de si mesmo e de sua força inútil.


Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado

De pequenos absurdos, essa capacidade de rir à toa,

esse ridículo desejo de ser útil

E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.


Resta essa faculdade incoercível de sonhar

De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade

De aceitá-la tal como é, e essa visão ampla dos acontecimentos

e essa impressionante persistência, e essa memória anterior

De mundos inexistentes, e esse heroísmo

Estático, e essa pequenina luz indecifrável

A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.


Resta esse desejo de sentir-se igual a todos

De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória

Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade

De não querer ser príncipe senão do seu reino.


Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto

Esse eterno levantar-se depois de cada queda

Essa busca de equilíbrio no fio da navalha

Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo

Infantil de ter pequenas coragens.


Resto eu, caminhando sozinha com esta mágoa indescritível

Sentindo-me perdida, quase à beira do precípicio

mas segura de que dei tudo de mim

sem esperar contrapartida


Mas fui a única a continuar a lutar interiormente

contra os medos da solidão, da marginalização

e sentindo a vossa falta (mais do que nunca na vida)

Quem sou eu afinal ?

P.S. Perdoai-me "Mestre Vinicius" por ter usado como introdução, parte do seu poema "A Haver"